quarta-feira, 24 de outubro de 2012

O Condominio


Nunca fui grande barra a matemática, mas este factor não me impede de ter noção de quando ultrapasso largamente o recorde de número de tropeções diários no pavimento irregular da minha sala de estar, especialmente quando a maior parte dos mesmos tem lugar na mangueira que atravessa a divisão maior de minha casa vinda da pia da cozinha em direcção à varanda, para a descarga em formato cachoeira de águas do Ganges à base de detergente espumoso com dois andares de altura num caminho de sentido único para ir desaguar na calçada pública, que diga-se em abono da verdade, apresenta uma regularidade de piso de fazer inveja ao ladrilhador de peschinbeque que vagueou pela área pública do meu protótipo de mansão durante a respectiva fase de construção. Apesar de ser algo que me provoca graves ataques de equimoses dermatológicas e estomatites estomatológicas, não posso afirmar que fico demasiado estropiado mentalmente com o acto de tropeçar numa qualquer junta mais desviada, que em casos extremos abre verdadeiros alçapões de quase cinco centímetros, onde já perdi duas unhas dos mindinhos dos pés e dez gramas de fiambre de sola do pé, pois na maioria das vezes apenas consigo aumentar a velocidade de empranchamento para mergulho no sofá de fabrico italiano, sendo portanto um pequeno conjunto de esponjas emolduradas numa estrutura maciça de madeira de carvalho velho, onde não raras vezes, a caniche da minha mais que tudo me afaga carinhosa e involuntariamente a aterragem, deixando-me contudo a roupa cravada de pêlo encaracolado e muco nasal extraído através do seu focinho eternamente húmido e minúsculo.

Fico danado sim, quando penso que o pivôt dentário que teve morte imediata na quina da mesa de jantar, após uma queda falha de pontaria no que ao acolchoado das almofadas do sofá diz respeito, me poderá vir a ser útil no futuro, quando eu tiver que enfrentar com poucas unhas e ainda menos dentes uma solipa de madeira cozinhada pela minha donzela, que normalmente me é apresentada como sendo carne originária de um qualquer mamífero bovino exótico de estufa, conquanto eu aposte todo o marfim que me decora a cavidade oral, que o alimento que permanece inerte no prato à minha frente entre duas batatas infectadas de míldio cozidas e umas colheradas de puré, já viu muitos comboios de mercadorias passar-lhe os metálicos rodados por cima a toda a velocidade, a caminho de uma qualquer central nuclear, com os contentores na sua quase totalidade radioactivamente corroídos. Infelizmente nem o problema do pavimento de minha casa ser mais irregular que uma passagem montanhosa do Utah acabada de ser atravessada por cinco manadas de colonos mórmons, nem os dotes culinários da minha princesa, ao nível de uma dona de gruta do pré-pleistoceno acabada de descobrir os benefícios do fogo na confecção de carne de animal cuja vida havia sido ceifada há pouco tempo a toque de calhaus de xisto afiados nas carapinhas de guerreiros rivais empalados na cerca da aldeia, podem ser apresentados em reunião de condomínio para posterior resolução.

Foi assim dentro de uma dinâmica vanguardista bastante antiga, que fechei o matutino com vários meses de existência que consultava desembargadamente de pernas para o ar, enquanto sentava as minhas nádegas gémeas na loiça cerâmica sanitária, e me concentrei com o intuito de galhardamente congeminar um plano que levasse a que uma reunião de condomínio a ser albergada nos barris plásticos de azeitonas pretas galegas guardados na cave que durante o inverno são arrendados pelos moradores a sem abrigos em troca de trabalho escravo, resultasse na contratação de um pedreiro-livre e de uma nutricionista para execução de alguns trabalhos nas áreas comuns do prédio, período que eu aproveitaria para numa decisão bastante popular entre os quadros gerentes dos diferentes serviços públicos, coloca-los sob a minha alçada, se bem que a expensas dos restantes co-moradores, que muito simpaticamente não levantariam a mais pequena objecção, derivado do total desconhecimento da situação a atropelar alarvemente a fronteira da legalidade, que regra geral, ajuda sobremaneira à colaboração entre vizinhos.

Portanto muni-me de um espírito entrepeneuriano, como talvez só tenha tido uma vez na vida, quando durante certa altura da minha conturbada juventude, decidi enveredar pelo design crânio-capilar rapando o cabelo a toda a minha família nuclear enquanto estes dormiam, e por família nuclear entenda-se um casal de primos ucranianos do meu pai, nascidos e criados em Chernobyl onde o seu progenitor exercia as funções de provador de vegetais produzidos nos incandescentes campos agrícolas da localidade tragicamente famosa. Iniciei então uma quimera de ingestão a granel de fruta de formato fálico arqueado, popularizada por ter o seu nome associado a uma República sem leis nem regras e onde se diz que as donzelas não usam lingerie para encobrir as vergonhas e os machos nascem com estômagos incrivelmente esponjosos para superior absorção de néctares de elevado teor etílizante. Após a digestão, arregimentei as cascas do fruto e distribui-as irmãmente pelos degraus da escadaria comum em pedra moleanos, encardidos e coçados pelos pitons de alumínio das chuteiras que todos os condóminos fazem questão de calçar à entrada do prédio para não riscar o pavimento do mesmo com o pó que trazem da rua nos sapatos, o que muito contribuiu para a camuflagem da armadilha vegetal que viria a ter grande impacto comercial na tabela de proveitos da farmácia vizinha, através de um excepcional surto de compra de mercurocromo e betadine, isto claro para além do caso especifico do cão guia do sr. Pedro Bisgarolho que após tropeçar no último degrau de acesso às águas furtadas onde este ia roubar os garrafões do mineral inodoro e incolor aí armazenados por mim para prevenir a quebra no abastecimento de água da rede pública no Dia do Julgamento Final, rebolou até ao patim do 1º andar, onde aterrou de focinho, transformando-se numa questão de segundos de um garboso Pastor Alemão, num baboso e anão Pug com as quatro patas engessadas e uma cauda maior que o resto do corpo.

Para grande tormento de todos os moradores do meu habitáculo de uma assoalhada, inicialmente o plano não atingiu os objectivos pretendidos aquando da sua magicação no chalé cagatório, pois durante a nervosa assembleia de vizinhos ficou latente um certo ressentimento primário pelos danos corporais incutidos no canídeo, o que para mim se revelou ser uma surpresa visto já por diversas vezes terem vindo à baila reclamações acerca do porte animalesco do animal carnívoro. Felizmente alguém puxou à conversa os longos dias de baixa médica requisitados pela quase totalidade dos condóminos derivado dos estatelamentos no ascensor pedestre e em três penadas fui eleito Presidente da Administração de Condomínio, com plenos poderes definidos nos estatutos, para não só decidir acerca de qualquer questão em discussão na Assembleia, como também para fazer ataques com trovões e relâmpagos desde que os mesmos sejam emanados do sovaco, no caso dos primeiros e das mãos no caso dos segundos. Na impossibilidade de completar este último predicado, contentei-me em enojar repetidamente os meus camaradas de fogo habitacional com repetidas repetições de trovões axilares entrecortados por um odoroso trovão nalgar, bem como em aprovar a moção que se encontrava sobre as costas de um sem-abrigo enrolado num caixote de papelão de um frigorífico Ariston de classe energética D, que havia alugado um dos barris de azeitonas em troca de três horas em posição canina, vulgarmente apelidada de quatro, de modo a servir de mesa para a reunião de condóminos, e igualmente para o repasto que se seguiu.

A partir deste momento foi uma questão de aguardar pelos dois pseudo profissionais nas respectivas áreas e tratar da resolução dos meus dois problemas. Para grande surpresa minha, nenhuma das questões logrou ser apagada da minha ardósia, onde para além de manter em dia a contabilidade dos comprimidos diários que tomo contra a alergia ao giz, também são assinaladas todas as coisas que me perturbam o quotidiano. O que tristemente aconteceu foi tão só que o pedreiro-livre contratado era um agorafóbico, para quem eu e a minha mais que tudo representavam uma multidão esfomeada e em fúria a atacar uma padaria após a fornada da manhã, pelo que se recusou a pousar o que quer que fosse dos seus calcantes na nossa sala. A única pessoa que conseguimos fazer ultrapassar com sucesso a ombreira de porta da nossa casa, em madeira besuntada a cuprinol, foi a nutricionista, que para tristeza do meu aparelho digestivo era hindu, pelo que a simples menção de bife bovino da minha parte, a levou a ameaçar-me com o sacrifício de um dos meus lóbulos auditivos em oferenda a Mahatma Ghandi, o Deus da falta de proteínas animais no bucho, o que inviabilizou qualquer tipo de palpite da sua parte acerca da forma de melhorar os dotes culinários daquela com quem viverei até que a morte nos separe. No final de contas apenas consegui aproveitar a sua visita para resolver o problema de excesso de magnésio acumulado no organismo através da ingestão deliberadamente exagerada de fruta originária da bananeira.

domingo, 7 de outubro de 2012

O Teatro

À hora marcada nos cartazes colados nas paredes virgens do Bairro Social ainda por inaugurar com cuspo laganhoso recolhido durante quatro longos anos em bancos de suplentes de equipas de basebol que disputaram o Campeonato de Veteranos das Minas de Amianto, uma buzina industrial ecoa com estampido pela sala anunciando a paragem da produção operária no ramo da obliteração bilhética. Ao mesmo tempo a sala é invadida por paramédicos para socorrerem um espectador em paragem cardio-respiratória na primeira fila e um outro com surdez momentânea sentado junto a uma coluna de som. Entretanto já circulam pelo amontoado de cadeiras várias meninas em trajes de can-can segurando sobre os volumosos peitos largas bandejas pejadas de pacotes de frutos secos, pipocas e peta zetas, para conforto de estômagos cujo tamanho já só seja medido em escalas de grossura de papel cavalinho, bem como de pacotes de preservativos para todos aqueles para quem o conforto desejado seja mais de foro intimo carnal. O diminuto tamanho das bandeletes usadas à cintura como único vestuário pelas meninas de can-can. deixa patente que neste auditório será mais fácil dar sumiço ao desejo carnal do que receber troco pelo pagamento de um pacote de amendoins torrados descascados banhados em mel de abelha africanizada. 

Apagam-se as luzes, sobe o pano e em palco vislumbram-se dificilmente as figuras de Constantino e Esposa sentados no que parecem ser duas cadeiras de praia em frente a um móvel de televisão apenas adornado com um rádio de dois decks de cassete abandalhadamente poisado sobre um naperon oitentista. Uma toalha sobre o que ao longe parecem ser dois caixotes de papelão empilhados, simula uma mesa que separa ambos os seres humanos e junto da Mais-que-Tudo a silhueta de um cão salta á vista. Supostamente é o caniche do casal, mas o seu tamanho, imobilismo e ligeiro brilho ao toque da ténue luminosidade revela à audiência tratar-se de um cão-de-loiça em formato São Bernardo cuja única semelhança com o pustulento animal de colo que por vezes partilha o leito de repouso dos donos, é o tamanho do barril que traz ataviado ao pescoço. Não fosse o caso do Técnico de Adereços estar hospitalizado ainda em convalescença de um canino ataque no canil local quando fazia castings para o papel de “cão” e talvez a ordem de despedimento do mesmo já pudesse ter sido acertado com o Presidente da Companhia TRAZ, abreviação de Teatro Ridiculamente AZelha, devido a deficiente desempenho da actividade laboral, avaliação para a qual contribui sobremaneira a fita adesiva laranja florescente que se vê do último balcão, a segurar uma das patas da cadeira de Constantino. Entre pedidos de silêncio da plateia e pom-pons de chearleaders, o espectáculo tem início: 

Donzela, enquanto afaga o toutiço cerâmico do cão – nem consigo acreditar no que estou a ouvir. 

Constantino, levantando os olhos do tampo da mesa, onde crava com a ponta de um canivete suíço comprado numa loja de roupa para crianças a chave do totobola – experimenta tirar esses edredons que tens a tapar os ouvidos e talvez oiças melhor. 

Princesa, de olhar perdido num cortinado cor pastel que tapa uma suposta janela – o silêncio é constrangedor. 

Constantino, de olhar fixo, frio e penetrante na entrada dos bastidores onde o adjunto dos Adereços manobra desastradamente com a boca a sua cadeira de rodas – pois, se ao menos o cão ladrasse. 

Cai o pano sobre o primeiro acto, literalmente. O varão feito de pontas de esparguete cozidas que suporta as cortinas cede ao peso do carpinteiro que por ele trepava a fim de barrar o mesmo com molho de bolonhesa para o lubrificar à passagem das argolas. Mais tarde o relatório de autópsia do operário realizado por três conceituados chef’s irá revelar que o excesso de cozedura desproveu a massa italiana de elasticidade e sustentabilidade eliminando por completo as suspeitas que recaiam sobre a qualidade do molho de tomate, que muitos injustamente acusavam de ser apenas ketchup. A queda do pano deixa a nu a superfície felpuda que cobre o tórax de Constantino, uma vez que no momento do acidente ele se encontra a mudar de fato-macaco. Após a retirada de entulhos e restantes detritos, incluindo uma orelha lascada do bibelot animal que perece ao impacto do tecido de fabrico egípcio, sobe ao palco um espectador para de surpresa dar um concerto de gaita-de-foles. Na verdade a gaita-de-foles não tem fole, pelo que é apenas um pífaro. No final da actuação o espectador vira as espaldas ao público, dobra a pélvis e levanta o kilt. A palavra “free” aparece tatuada na nádega esquerda e a palavra “dom” revela-se pujante na nádega direita. Confirma-se que o individuo é escocês e da plateia começa a ouvir-se em uníssono desafinamento e numa muito mal conseguida tentativa de pronunciamento escocês os versos da “Auld Lang Syne”. 

Nas primeiras filas a agitação é constante perante o desejo de colocar os olhos, e quem sabe vir a conhecer Chen Guang Cheng, dissidente chinês e um dos principais responsáveis pela publicação do “Livro Vermelho” de Mao Tsé Tung, que está sentado na terceira fila, junto ao corredor para mais facilmente aceder aos lavabos e saciar os desejos da bexiga incontinente que se aloja há uns anos no seu corpo de tez amarelada, excepto nas costas onde a cor da preguiça sucumbiu ao negro do cicatrizamento de golpes de chicotes feitos a partir de folhas de listas telefónicas para não deixar marcas. Foi um destacado encadernador da gráfica onde o livro foi produzido e é reconhecido como o individuo que teve a ideia de o encadernar em capa dura para poder servir de suporte para copos de sumo de bambu em piqueniques nas montanhas de Minshan. Aproveitando a sua cegueira derivada de ter sido ele o revisor de texto de todos os “Livros Vermelhos” produzidos, a seu lado senta-se um monge budista tibetano radicado em Teerão, onde desempenha funções olheiro ao serviço das melhores madraças do país, fornecendo aconselhamento psicológico e executando testes psicotécnicos junto de escolas secundárias e algumas universidades a fim de recrutar os melhores terroristas suicidas do país. 

Entram os actores para o segundo acto, saltando à atenção o sorriso alaranjado de Constantino. De facto o confuso término do primeiro acto custou-lhe a perda dos dentes postiços, pelo que em seu lugar traz na boca um quarto de laranja, o que lhe dá um ar de quem acabou de almoçar um pote de lava fundente acabadinha de afundar em cinzas uma qualquer localidade piscatória numa ilha do Pacífico. A Mulher-da-Vida dele mantém o ar áspero de quem sabe que o melhor amigo do homem não é facilmente substituído por uma peça de faiança, por muito que esta não tenha em si motivos fálicos. A mesa também danificada na refrega foi agora substituída por um par de grades plásticas de cerveja. O burburinho que ecoa dos bastidores não deixa dúvidas de que o conteúdo das grades já foi alegremente consumido. O segundo acto tem início sem que a maior parte da audiência tenha voltado do bar, onde assistem a uma declamação de poesia islandesa, obra e graça de um norueguês nostálgico da língua original do seu país. 

Amorinho, enquanto simula um entrançar de cabelo, impossível desde que o encenador lhe rapou o cabelo à máquina zero como praxe por ter sido aceite para este papel – (silêncio) 

Constantino, levantando-se do chão após queda aparatosa por tropeção no pífaro encardido deixado para trás pelo escocês – (silêncio) 

Ligam-se todas as luzes do auditório e o rádio em cima da mesa de televisão começa a debitar bem alto sons de electricidade estática entrecortados por breves interrupções de comunicações via walkie talkie entre a governanta do hotel localizado a duzentos metros da sala de espectáculo e uma sua subalterna. Entre contagens de peúgas e camisas é perceptível que se trata da lista de roupas a entregar na lavandaria. 

Constantino, limpando o pó das calças, cujo padrão xadrez azul e laranja fica agora visível a todos os que pagaram por um lugar sentado – até que enfim o piquete da companhia eléctrica resolveu a avaria. Desliga o rádio e as luzes e vamos deitar. 

Cai um toalhete com aroma a mentol sobre o segundo e último acto. A Donzelinha Linda continua em palco, onde se deixou dormir encostada a um dos pilares em papier maché que segura a estrutura onde ficou colocada a Orquestra Muda que muito contribuiu para o silêncio constantemente afinado durante o espectáculo. Constantino em três passos coloca-se na frente do palco e faz uma vénia às numerosas cadeiras já vazias após a deserção dos seus prévios ocupantes em direcção ao bar onde estão a oferecer cálices de natas azedas sobrantes dos galões tirados ao intervalo. O espectáculo terá excelentes criticas com toda a certeza.