Ali escondido na escuridão do bunker, onde apenas conseguia enxergar o meu próprio nariz durante cerca de dez minutos, que era a duração da energia solar na estrela fosforescente colada no tecto do edifício, recapitulei o momento do anuncio da decisão à minha esposa, que malgrado ter aceitado muito bem a noticia, me custou três divórcios e outros tantos casamentos com ela, correndo o risco de este número poder aumentar no exacto momento em que ela despertar do seu quarto coma motivado pelo impacto do seu esbelto crânio com o pavimento lustroso da nossa habitação após o seu quarto desmaio relacionado com o facto de eu lhe ter comunicado, também pela quarta vez, a minha famigerada decisão. É certo que poderia já ter optado por lhe comunicar a boa nova quando ela estivesse confortavelmente deitada no nosso leito matrimonial, mas o medo de a decisão de divórcio ser, desta feita, irreversível, impede-me de o fazer e agora apenas me limitarei a entabular a dolorosa conversa quando ela se encontrar com a caniche ao colo, na eterna esperança de a ver prostrada em cima do abominável animal, poupando-me assim a vergonha de ter que percorrer a distancia entre a loja de comida para animais e a minha casa com um pacote de quinze quilos de comida para peixe, pois o bichano ainda não tem o seu “eu” perfeitamente identificado e nos últimos tempos desenvolveu uma paixoneta de adolescente por qualquer animal de guelras e escamas que a minha donzela coloque na tábua de cortar, a fim de preparar o nosso repasto.
Já dizia o meu colega de carteira do 7º ano, do alto de toda a sua sapiência de professor catedrático da universidade do encosta ao balcão taberneiro, que “mente sã e corpo são ajudam a aguentar a alcoolização”. Dizia-o exibindo, com o mesmo orgulho que um militar graduado expõe a sua distinção da Ordem de Torre e Espada, a folha A4 onde um médico de charuto na boca e um dedal de moscatel destilado numas águas furtadas num canto recôndito da Beira Baixa raiana na mão, havia escarrapachado o severo diagnóstico de cirrose terminal, que lhe cortava a direito e sem anestesia os horizontes do futuro, ao ponto de o ter levado a contrair matrimónio aos catorze anos para poder procriar um herdeiro, a quem contava vir um dia a confiar aquele pedaço de papel, já emoldurado, que fazia dele o Casanova das filhas dos empresários do ramo da produção e contrabando de bebidas à base de cereais e legumes excedentes das quotas de produção impostas pela UE, instigadas pelos seus progenitores a trazerem para casa alguém que estaria sempre mais preocupado em lhes deixar todas as suas posses em troca de um mata-bicho hortofrutícola de alto teor etílico, do que em lhes dar a santa machadada nas regalias hereditárias das suas descendentes, sendo que no que tocava à Guerra das Espirituosas, como viria a ser chamada pelas autoridades, um hímen tinha o mesmo valor que um soldado raso na batalha de La Lys.
Na verdade durante a minha juventude nunca entendi o verdadeiro significado da expressão utilizada até à exaustão pelo bom do Meio-Fígado, como era pomposa e carinhosamente tratado por todos aqueles, que como eu, tinham prazer em partilhar com ele uma partida de Malha no Bicho, mesmo considerando que a partir da segunda semana de aulas o famigerado jogo popular foi rebaptizado com o nome de Malha no Meio -Fígado, o que reflectia a afeição que todos nós tínhamos por ele, a ponto de baptizarmos uma das nossas diversões supremas com o seu nome. A verdadeira compreensão da dimensão das palavras dele só me chegou já adulto e quase literato, na corrida a algo mais que a presidência do Meu Clube, algo como um espaço no betão coçado da bancada central, onde pudesse em fim ver ao perto as diatribes do conjunto do meu coração e poder ofender com aproposito toda a dignidade do árbitro da partida.
Para mal dos meus pecados, a devida compreensão do significado da expressão utilizada pelo jovem alcoólatra abateu-se sobre a minha cabeça à mesma velocidade que a calvície, apesar de não ter a mesma relação que esta tinha com a exposição a uma garrafa de vodka, com níveis mais elevados de urânio do que o autocarro de transporte de operários das minas da Urgeiriça ao fim de um dia de trabalho, que havia sido importada da Ucrânia por um siciliano a quem tinha sido adjudicada em concurso público o aluguer da casa de banho de serviço da garagem do nosso prédio, onde ele gere um, muito bem-sucedido, negócio de desmembramento e ocultação de cadáveres. Definitivamente só entendi o erro de análise que havia feito ao adágio do Meio-Fígado após acabar de o adoptar e escrever, como lema de campanha, em 10.000 panfletos artesanais, feitos nas costas de bilhetes do comboio-fantasma que haviam sido adquiridos há uns cinco anos, para proporcionar novas experiências à minha sogra, especialmente a sensação de falecimento após sentir o braço esquerdo dormente e uma leve picada no local onde, na altura, eu pensava existir algum órgão provocador de batimento cardíaco, o que mais tarde se veio a perceber ser um erro de julgamento da minha parte, pois todo o dinheiro investido na diversão apenas resultou num hediondo desgrenhamento capilar no toutiço da idosa, que a transformou na maior atracção do dito comboio-fantasma, sem que contudo eu obtivesse algum lucro fiduciário do acontecimento.
Agora, cometido o enésimo erro da minha vida, restava-me esperar que a elevada taxa de analfabetismo na massa associada do Meu Clube facilitasse a minha subida ao poleiro, até porque eu lá estaria à boca da urna a garantir-lhes que a colocação da cruz no quadrado em frente do meu nome seria a decisão que mais facilmente lhes garantiria o alivio do aperto de pescoço que as minhas mãos lhe estariam a facultar, bastando-lhes que o dito rabisco fosse igual ao que haviam feito no respectivo bilhete de identidade.