sexta-feira, 7 de outubro de 2011

O Lema

Saí a correr de casa, apenas com um saco de espinafres a tiracolo e uma mochila com a roupa suja que já não cabia no tanque, para entregar no Exército de Salvação, em direcção à minha sede de campanha, que estava instalada no bunker nuclear da cidade, o qual havia sido embargado pela Câmara local três dias após o inicio da sua construção devido a diversos problemas estruturais, entre os quais o facto de não estar enterrado na crosta terrestre, a coincidência de o local da sua construção já ter sido previamente ocupado pelo buraco nº 7 do Golf Course local e também porque o único “betão” que fora aplicado na sua construção ser o próprio proprietário do edifício, um minhoto paranóico natural de Tel Havive, que havia sido baptizado com esse apelido por, desde pequeno, pentear o cabelo à tigela e vestir calças à meia canela. Infelizmente para ele, ao segundo dia de trabalhos foi atropelado pelo buggy das sandes que havia ficado destravado no tee de partida no topo da colina, onde um palestiniano de kilt fúchsia e branco ameaçava detonar os balões de água que trazia à cintura se o condutor do buggy não lhe providenciasse uma gelatina de Três Sabores envolta em leite-creme. Após uma autópsia que revelou como causa de morte sufoco por engasgo com um chumbo de dente que se havia soltado após o impacto da viatura eléctrica, o óbito foi declarado por um estudante de medicina dentária que trabalhava no campo de golfe como limpa bolas durante as férias do verão, seguindo-se o cumprimento do último desejo do Betão que consistia em ser enterrado no seu bunker, tornando-se o elemento mais sólido do edifício e também, o único a quem um ataque nuclear não iria atingir pois apenas ele fazia companhia às raízes da vegetação no subsolo terrestre.

Ali escondido na escuridão do bunker, onde apenas conseguia enxergar o meu próprio nariz durante cerca de dez minutos, que era a duração da energia solar na estrela fosforescente colada no tecto do edifício, recapitulei o momento do anuncio da decisão à minha esposa, que malgrado ter aceitado muito bem a noticia, me custou três divórcios e outros tantos casamentos com ela, correndo o risco de este número poder aumentar no exacto momento em que ela despertar do seu quarto coma motivado pelo impacto do seu esbelto crânio com o pavimento lustroso da nossa habitação após o seu quarto desmaio relacionado com o facto de eu lhe ter comunicado, também pela quarta vez, a minha famigerada decisão. É certo que poderia já ter optado por lhe comunicar a boa nova quando ela estivesse confortavelmente deitada no nosso leito matrimonial, mas o medo de a decisão de divórcio ser, desta feita, irreversível, impede-me de o fazer e agora apenas me limitarei a entabular a dolorosa conversa quando ela se encontrar com a caniche ao colo, na eterna esperança de a ver prostrada em cima do abominável animal, poupando-me assim a vergonha de ter que percorrer a distancia entre a loja de comida para animais e a minha casa com um pacote de quinze quilos de comida para peixe, pois o bichano ainda não tem o seu “eu” perfeitamente identificado e nos últimos tempos desenvolveu uma paixoneta de adolescente por qualquer animal de guelras e escamas que a minha donzela coloque na tábua de cortar, a fim de preparar o nosso repasto.

Foi embrenhado no meio destes pensamentos que choquei de frente contra o primeiro grande desafio eleitoral, a que tinha que corresponder com a mesma solicitude e pragmatismo que aplico aos momentos épicos da minha vida quotidiana, como a árdua opção de abandonar o uso da vulgar cueca de pano aparrada à virilha e dar a exclusividade da protecção genital aos boxers de tecido elástico, mas acetinado, mais condizentes com as dinâmicas dimensionais e de ocupação de espaço na zona, decisão que me levou alguns anos a acolher mas a que acabei por aceder de livre vontade após conselho paroquial. Agora nem o ai-Jesus dos acólitos do bairro me poderia valer, pois precisava limpar o caruncho da minha massa encefálica e engendrar um lema que levasse os cerca de oito sócios do Meu Clube a colocar a cruz mágica em frente ao meu nome, em vez de pedirem ao Sr. Cruz mais um saco de pevides para verem o próximo jogo de um clube sem Direcção, algo que não havia impedido a sua subsistência desde a fundação, onde já na altura, a votação magna havia sido substituída por uma garrafa de pirolito Bilas e umas azeitonas britadas.

Já dizia o meu colega de carteira do 7º ano, do alto de toda a sua sapiência de professor catedrático da universidade do encosta ao balcão taberneiro, que “mente sã e corpo são ajudam a aguentar a alcoolização”. Dizia-o exibindo, com o mesmo orgulho que um militar graduado expõe a sua distinção da Ordem de Torre e Espada, a folha A4 onde um médico de charuto na boca e um dedal de moscatel destilado numas águas furtadas num canto recôndito da Beira Baixa raiana na mão, havia escarrapachado o severo diagnóstico de cirrose terminal, que lhe cortava a direito e sem anestesia os horizontes do futuro, ao ponto de o ter levado a contrair matrimónio aos catorze anos para poder procriar um herdeiro, a quem contava vir um dia a confiar aquele pedaço de papel, já emoldurado, que fazia dele o Casanova das filhas dos empresários do ramo da produção e contrabando de bebidas à base de cereais e legumes excedentes das quotas de produção impostas pela UE, instigadas pelos seus progenitores a trazerem para casa alguém que estaria sempre mais preocupado em lhes deixar todas as suas posses em troca de um mata-bicho hortofrutícola de alto teor etílico, do que em lhes dar a santa machadada nas regalias hereditárias das suas descendentes, sendo que no que tocava à Guerra das Espirituosas, como viria a ser chamada pelas autoridades, um hímen tinha o mesmo valor que um soldado raso na batalha de La Lys.

Na verdade durante a minha juventude nunca entendi o verdadeiro significado da expressão utilizada até à exaustão pelo bom do Meio-Fígado, como era pomposa e carinhosamente tratado por todos aqueles, que como eu, tinham prazer em partilhar com ele uma partida de Malha no Bicho, mesmo considerando que a partir da segunda semana de aulas o famigerado jogo popular foi rebaptizado com o nome de Malha no Meio -Fígado, o que reflectia a afeição que todos nós tínhamos por ele, a ponto de baptizarmos uma das nossas diversões supremas com o seu nome. A verdadeira compreensão da dimensão das palavras dele só me chegou já adulto e quase literato, na corrida a algo mais que a presidência do Meu Clube, algo como um espaço no betão coçado da bancada central, onde pudesse em fim ver ao perto as diatribes do conjunto do meu coração e poder ofender com aproposito toda a dignidade do árbitro da partida. 

Para mal dos meus pecados, a devida compreensão do significado da expressão utilizada pelo jovem alcoólatra abateu-se sobre a minha cabeça à mesma velocidade que a calvície, apesar de não ter a mesma relação que esta tinha com a exposição a uma garrafa de vodka, com níveis mais elevados de urânio do que o autocarro de transporte de operários das minas da Urgeiriça ao fim de um dia de trabalho, que havia sido importada da Ucrânia por um siciliano a quem tinha sido adjudicada em concurso público o aluguer da casa de banho de serviço da garagem do nosso prédio, onde ele gere um, muito bem-sucedido, negócio de desmembramento e ocultação de cadáveres. Definitivamente só entendi o erro de análise que havia feito ao adágio do Meio-Fígado após acabar de o adoptar e escrever, como lema de campanha, em 10.000 panfletos artesanais, feitos nas costas de bilhetes do comboio-fantasma que haviam sido adquiridos há uns cinco anos, para proporcionar novas experiências à minha sogra, especialmente a sensação de falecimento após sentir o braço esquerdo dormente e uma leve picada no local onde, na altura, eu pensava existir algum órgão provocador de batimento cardíaco, o que mais tarde se veio a perceber ser um erro de julgamento da minha parte, pois todo o dinheiro investido na diversão apenas resultou num hediondo desgrenhamento capilar no toutiço da idosa, que a transformou na maior atracção do dito comboio-fantasma, sem que contudo eu obtivesse algum lucro fiduciário do acontecimento.

Agora, cometido o enésimo erro da minha vida, restava-me esperar que a elevada taxa de analfabetismo na massa associada do Meu Clube facilitasse a minha subida ao poleiro, até porque eu lá estaria à boca da urna a garantir-lhes que a colocação da cruz no quadrado em frente do meu nome seria a decisão que mais facilmente lhes garantiria o alivio do aperto de pescoço que as minhas mãos lhe estariam a facultar, bastando-lhes que o dito rabisco fosse igual ao que haviam feito no respectivo bilhete de identidade.