sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

O Aniversário


25 de Dezembro – Hoje a minha sogra faz anos e é Natal. Na minha cabeça não há forma de não pensar que existe uma forte relação cósmica entre estes dois acontecimentos, especialmente se tivermos em atenção que isto é algo que se repete todos os anos, o que a mim me causa admiração pois esta altura do ano é vista como uma Quadra Santa e este é o último nome que me passa pela cabeça chamar ao velho bisonte. A festa de aniversário está marcada para amanhã pois a jarreta quer aproveitar a greve de enfermeiros e auxiliares do lar para proporcionar uma tarde de pândega aos seus colegas de vazadouro. Infelizmente, o convite a solicitar a minha presença já me foi entregue, mal grado eu ter recusado por três vezes a encomenda. Acabei por receber um telefonema anónimo onde umas cordas vocais femininas desgastadas por cerca de 80 anos de tagarelice inútil e de gritaria pseudo-histérica, me ameaçavam com a possibilidade de ser feito um telefonema para uma rádio local a pedir a transmissão em ondas hertzianas de baladas de cariz piroso-amoroso em meu nome.

Após ler que a festa teria lugar no pavilhão gimnodesportivo do lar onde há uns anos eu e a minha mais que tudo a depositamos, não pude deixar de soltar um esgar irónico, seguido de um esgar de dor, pois enquanto lia o convite telegráfico que apenas dizia “estás convidado. A festa é no gimnodesportivo do lar. Haverá rastreio do cancro da próstata”, deixei que o fogo que eu tinha ateado ao mesmo convite me atingisse o polegar direito, mesmo apesar de o papel estar seguro pela minha mão esquerda. Coloco a hipótese de a gasolina em que embebi o convite poder ser responsável pelo tamanho das labaredas, mas por outro lado também é possível que eu tenha abusado um pouco no napalm. Sempre ouvi dizer que para fazer uma folha A4 são necessárias duas árvores, mas reparando que o convite havia sido impresso em papel cavalinho de gramagem 120, preferi não arriscar e utilizei a quantidade de napalm indicada para dez árvores, e mais um pouco. No fim de contas, tudo resultou como esperado, tendo o referido papel ficado absolutamente incinerado, tal como a porta da minha cozinha, o que deverá ser do agrado da minha princesa, uma vez que ela já há um meses que me pedia para trocar aquela porta, derivado do elevadíssimo número de vezes em que a mesma se havia fechado e trancado misteriosamente impossibilitando a sua cadela de sair da cozinha e ir à caixa de areia fazer as suas necessidades. Confesso que para mim o mistério da porta que fecha e tranca sozinha não existia, até porque tenho sempre bem presente na memória as coisas que eu faço às escondidas.

Após reflectir sobre o assunto que prometia incomodar a minha pacata vida de desempregado, por pelo menos uma tarde, decidi-me a comparecer na festa de aniversário, até porque o facto de esta não ser no quarto da ex. mulher do meu já falecido sogro, implicava que ela não iria estar presente, uma vez que se encontrava imobilizada na cama. Efectivamente, esta impossibilidade de se levantar, nada tinha a ver com problemas físicos, apenas resultava de uma aula de introdução às tapeçarias de Arraiolos promovida pela associação de solidariedade, vulgarmente conhecida por INAPTOS, sigla de INcontinência AParece a TOdas as Sogras, no decorrer da qual a excelsa mãe da minha mulher conseguiu a habilidade de se bordar à cama. Por acaso, na foto que foi publicada no site da INAPTOS, é visível que o ponto de Arraiolos está bem repuxado sim senhores e que os motivos florais da tapeçaria em que se transformou a progenitora da minha esposa em muito beneficiam o aspecto físico da velha carcaça. Uma vez mais ficou patente que não há nada que umas orquídeas envoltas em arabescos não possam embelezar, não obstante a desfocagem da cara da mulher na foto também ter ajudado à tarefa se bem que pecou por escassa.

De facto, o incidente já aconteceu há umas boas três semanas, mas ainda não foi resolvido. No dia da aula de Arraiolos, a professora bem tentou soltá-la, mas não foi bem-sucedida pois ela era apenas uma substituta da professora especializada em Arraiolos que se havia ausentado nesse dia para comparecer a um workshop de rendas de bilros. Infelizmente para a enferma idosa, que a acreditar no mau feitio que conserva, não estará tão enferma quanto seria universalmente desejado, a professora substituta tinha tirado a especialidade em bordados de Castelo Branco, e apenas tinha preparado a aula com uma rápida leitura na diagonal do manual de execução do ponto de Arraiolos, sendo que não houve tempo para aprender a desfazer os mesmos. Entretanto fora contactada a Associação de Tapeçarias e Naperons À Base de Lanifícios e Inertes, presidida pela D. Arminda, disléxica que havia eternizado a sigla da associação como TALIBAN, a fim de ser enviado um piquete de emergência. Para azar daquela cujo hobby é infernizar a minha vida e sorte de todos os que a rodeiam, o único piquete que estava ao serviço naquele dia na TALIBAN era o piquete de greve, que se encontrava de plantão devido a um protesto contra o elevado preço que os amoladores de agulhas estavam a cobrar pelo indispensável serviço. Quando contactados, levantaram a tarja que dizia “Uma Agulha Romba Nem Serve Para Vos Partir a Tromba” e ficaram de dar um saltinho ao lar dentro de dois meses, visto ser essa a duração prevista da greve. Recordo bem que na altura lhes propor que prolongassem a greve por mais quatro anos, mas fui informado que tal seria impossível pois tinham uma encomenda de lã da Índia prevista para chegar em Outubro e que se não fosse logo aplicada em serapilheira rapidamente se deterioraria. A tristeza patente na minha face foi de tal forma visível que eles se retiraram com a promessa de que a fim de empatarem tempo, iriam proceder à abertura de um Concurso Público para contratação de uma técnica especializada em casos destes. No geral, apontavam para seis a sete meses para a conclusão da libertação da mulher que eu tinha herdado da minha esposa, através do casamento.

26 de Dezembro – Hoje é o dia da festa de aniversário do ogre que deu à luz a minha esbelta esposa e as coisas começaram logo a correr mal. Uma vez mais desconfio que há relacionamento cósmico-tântrico entre os factos anteriormente mencionados. Logo ao sair de casa deparei com as minhas sapatilhas de rodinhas assentes em quatro tijolos. Sem surpresa descobri que me roubaram as rodinhas que haviam sido recauchutadas há pouco tempo, logo depois de eu ter capotado para uma sarjeta por ter perdido a aderência ao piso quando atravessava uma estrada alagada de cerveja que havia escorrido de dentro de um barril na coleira de um São Bernardo. Não querendo aqui entrar em acusações estéreis, a verdade é que, nem o São Bernardo tinha licença para o transporte de bebidas alcoólicas, nem a mesma seguir em vasilhame em inox como está regulamentado.

Este ligeiro imprevisto custou-me a chegada tardia ao palco da festa, que só por acaso, até já tinha finado. Segundo relatos deixados escritos nas paredes por alguns presentes a coisa não tinha corrido pelo melhor, uma vez que o caquéctico ser tinha mandado vir um rabino para a cerimónia do aniversário, mesmo apesar de poucas semanas antes se ter convertido ao islamismo. Também facto que causou estranheza foi o de a mesa de carnes frias não incluir carne de vaca, segundo a imobilizada, por motivos religiosos. A título de curiosidade, dizem as más-línguas que as carnes frias tinham sido acabadas de confeccionar quando chegaram à mesa, o que levou a que diversos idosos tenham ficado cegos uma vez que o calor emanado pelos bifes lhes embaciou as lentes garrafais dos óculos, o que deu azo a um divórcio visto que a Sra. Dona Marília, ao ver o seu marido cair de quatro agarrado à saia da jovem e esbelta empregada da empresa de catering meteu baixa da sua crónica dor de cabeça e enfardou um valente chocho no rabino. Só alguns minutos mais tarde é que a precipitada senhora reparou que a queda do seu marido havia sido motivada pela quebra do eixo da roda traseira da sua cadeira de rodas, que finalmente havia vergado a anos a fio de enferrujamento. Infelizmente para o pobre rabino, já nada havia a fazer pelo seu casamento pois se é verdade que fora a Sra. Dona Marília a beija-lo, também não é menos verdade que quem levantou a saia à septuagenária foi mesmo o clérigo e a sua esposa estava demasiado longe do calor das carnes frias para não ver aquele desplante.

Felizmente para mim, à hora a que cheguei ao local da festa, apenas lá estava o curador do edifício, que muito gentilmente me convidou para uma visita guiada pela história do mesmo. Foi assim desta forma que fiquei a saber que o projecto do edifício era de origem japonesa, pelo que toda a estrutura do mesmo era propositadamente resistente a sismos, algo deveras útil se tivermos em conta que mais de sessenta por cento da população do lar era acometida pela doença de Parkinson e que destes, quase quarenta por cento sofriam de alzheimer, o que fazia com que frequentemente se esquecessem dos apelos dos funcionários para que não se encostassem às paredes. Curiosamente todas estas explicações foram-me dadas pelo meu interlocutor sem que, por uma vez que fosse, ele se tivesse levantado da cadeira. Parece que sempre houve rastreio do cancro da próstata e pelos vistos era de presença obrigatória.

6 comentários:

Diego Armés disse...

Como é que eu só dei com isto hoje?

Constantino disse...

Talvez porque smepre prezaste por te manteres intelectualmente saudável.

Sempre Benfica disse...

Espero que não tenhas sogra, porque se tens 'tás tramado meu e com F grande!
Fabuloso!

xirico disse...

Mais um grande texto que dá um gozo enorme de ler.

Miss M. disse...

Gostei especialmente do perigoso e maquiavélico esquema do tapete de arraiolos. Grande Tino! :)

JNF disse...

Olha que a tua sogra tem net no lar... cuidado...