quinta-feira, 26 de maio de 2011

O Vicio

Estou com dificuldades em dormir e a principal causa desta situação não é a rudeza do guardanapo que utilizo para limpar a baba que a cadela da minha mais que tudo insiste em despejar na minha bochecha, enquanto arfa o seu hálito de restos do nosso jantar de ovos escalfados com ervilhas directamente no meu nariz. Sinto o meu estômago passear alegremente, como que a saltitar numa praia, a duas milhas náuticas de um naufrágio com derramamento de um petroleiro, pelo meu abdómen fora, qual monge acabadinho de ser excomungado da Igreja Católica, após se aperceber que o voto de castidade acabou de ir para o galheiro e que, por isso, pode começar a preencher os papéis de divórcio da sua mão direita pois a partir de agora vai passar a dançar o corridinho a dois, a três ou a quatro.


Tudo isto porque sinto a minha relação com os meus vizinhos deteriorar-se a cada dia que passa, de tal forma que já tenho saudades dos olhares de soslaio que estes me lançavam nos tempos em que eu, à sorrelfa, lhes misturava a roupa na lavandaria do condomínio, acto que fez com que o Sr. Apolinário usasse durante quase quatro meses as cuecas fio dental da filha do Sr. Laurindo, por estas lhe terem ficado enroladas nos pêlos anais, após as ter vestido, naquele que ele chamou um "acidente" derivado do facto de serem da mesma cor dos seus boxers, o inconfundível branco virginal de quem já não o é.


O facto de a cuequinha encarcerada em tão recôndito local ser de renda, levantou na altura, diversas insinuações acerca do têxtil de fabrico dos boxers do homem, mas acima de tudo, a troca de lingerie conduziu a uma campanha de difamação da minha pessoa, orquestrada pelo infame Apolinário, que chegou ao ponto de ser colada na porta de entrada do prédio uma comunicação que informava todos os condóminos que eu, Constantino, havia sido visto a consumir maça Bravo Esmolfe no almoço de comemoração dos 23 anos do aparecimento do bigode da D. Antónia, quando era pública a minha preferência por maça Golden. Acima de tudo, sempre reneguei e continuarei a renegar a Bravo Esmolfe pois de tão pequena que é, praticamente se evapora à passagem do desencaroçador. E não mudarei a minha opinião, não ser que a indústria dos utensílios de cozinha se decida a produzir um com um raio de acção bem menor, permitindo-me degustar um pouco mais do que a casca verde do fruto.


Desta feita o desagravo da vizinhança deve-se ao único vicio que actualmente alimento, isto, claro, após ter feito tratamento ao meu anterior vício de observar o crescimento das minhas unhas dos pés, o que me custou o despedimento do emprego por absentismo, bem como o aumento do meu peso em três quilos e duzentas por sedentarismo, sendo que no final não entendi a lentidão de todo o processo, talvez por idiotismo. Assim, a única coisa que me faz fugir às minhas obrigações, é assar fofos cubos de marshmalow no hall de entrada do prédio, tendo, por isto, sido denunciado por diversos condóminos, revoltados com o facto de eu só utilizar acendalhas de petróleo, em vez das ecológicas, o que deixa um cheiro a plataforma petrolífera em todo o fogo habitacional, que por sua vez, está a provocar o deslocamento de especialistas em exploração do ouro negro para o local a fim de estudarem a existência de reservas abundantes do minério em questão.


Acima de tudo a causa da ira dos vizinhos é a escassez de lugares de estacionamento que esta demandada de estranhos está a provocar, até porque o estacionamento subterrâneo do prédio continua totalmente preenchido com o rebanho de ovelhas e três coelhos que o Sr. Tibério trouxe da Trás-os-montes natal. São para cima de cento e cinquenta cabeças de gado, ao que se deve somar cerca de cem metros quadrados de erva artificial que as ovelhas estupidamente consomem como sendo alfalfa de superior qualidade. Neste ponto, uma palavra de apreço para os três coelhos, que até hoje não se deixaram levar pelo embuste, apesar do mesmo lhes custar longas temporadas sem amaciarem o estômago faminto.


Como cabecilha desta revolta contra a minha pessoa, está plenamente identificado o Sr. Rei, que desde o maléfico comunicado das maçãs tudo tem feito para me dificultar a vida. Convém referir que o Sr. Rei é neto do magnata das maças, inventor, produtor e vendedor da maça Reineta, sendo ele, hoje em dia o dono da fábrica da maça Bravo Esmolfe após desavença familiar com o progenitor do seu progenitor. Acima de tudo, esta cisão deveu-se ao facto de, após anos a fio a aguardar o convite para ser sócio do seu avô, naquela que era, na altura, a fábrica das maças Rei, o Sr. Rei viu o convite ser entregue à sua irmã mais nova, sendo que ele sempre considerou esta decisão como uma tramóia da sua avó, que nunca lhe perdoou o facto de este sempre ter defendido que a maça deveria ser vermelha e não castanha esverdeada. Havia sido a sacana da velha, armada em decoradora a martelo, que havia escolhido a coloração da maçã Rei. Assim, o que poderia ser hoje a maça Reineto, é mundialmente conhecida como Reineta. O Sr. Rei jurou vingança e fundou a Bravo Esmolfe, utilizando o nome de solteira da esposa para baptizar o novo fruto, que segundo ele, seria um “maça de bolso”. Aqui fica óbvia a sua irritação para comigo após ter sabido da minha eloquente nega ao consumo do seu produto.


Felizmente para mim, qualquer pedido de punição à minha pessoa por parte da administração de condomínio tem que ser aprovada por unanimidade, que não foi obtida pois os proprietários do 3º esquerdo não possuem viatura automóvel, uma vez que a que tinham foi vendida a fim de conseguirem arregimentar dinheiro para pagar uma rinoplastia à filha, infeliz portadora da terrível doença do “nariz de papagaio”. Como o que nasce torto nunca se endireita, excepto o nariz, ela que no pré operatório era conhecida como a “Catatua”, viu uma vez mais o drma abater-lhe à porta. No pós-operatório deu-se uma destruição de hemácias no seu corpo, que levou à produção de bilirrubinas a partir da hemoglobina. Basicamente contraiu Icterícia e ficou com a pele mais amarela que o sorriso da sua mãe quando foi apanhada a chupar longos fios de esparguete, sem reviamente os enrolar no garfo, o que lhe valeu a alcunha de “Canária”. Actualmente é a minha colega de assadas de marshmallow pois tem esperança que o fumo do lume lhe dê outra tonalidade à pele, repetindo até à exaustão que prefere que lhe venham a chamar "corvo".

1 comentário:

Ricardo disse...

Delicioso.