segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

A Tropa

“A Sorte Protege os Audazes”, dizem os Comandos, ancorados na audácia de andarem sempre em manadas Foxtrot Alfa Cambio Over and Out, e armados até às pontas das tatuagens de G3’s e outras bijutarias como facas de mato e corta unhas, não vá uma unha de gel encravar a meio da selva de Monsanto e jogar pela lama toda a audácia da rapaziada. Há também aqueles que não descuram um bom aprovisionamento de graxa castanha, utilizada comummente pelos valentes loiros para disfarçarem esse evidente carimbo de pouco desenvolvimento intelectual. Esta medida é apoiada por muitos oficiais quando em combate, pois o inimigo tem sempre tendência a alvejar primeiro os morenos e deixar os loiros para o fim. É o que se chama “decapitar intelectualmente o inimigo”. A cor de graxa preferida é o Light Ash Brown. Apenas porque condiz com a farda.

Por audacioso entenda-se um corajoso, um valente, um temeroso, pelo que por vezes, ser audaz também implica uma interpretação sui generis do Dicionário da Língua portuguesa da Porto Editora, ou outro qualquer, se bem que eu prefira um qualquer outro pois o primeiro, tendo em conta ser do Porto, certamente vem dactilografado com os “B’s” e “V’s” trocados. Imagino que o que fez saltar a tampa ao Amílcar Cabral foi o “monstro colonizador” se ter referido ao país dele como “Cavo Berde”. Dizem as más linguas que, como vingança, o pobre do Amílcar sempre se referiu ao Salazar como o “Líder dos Homens Vrancos” e isso custou-lhe a vida em mais uma muito honrosa e honesta cilada montada pela PIDE. Era gente de grande aprumo e honradez, como daquela vez em que limparam o sarampo a 7 jovens arruaceiros que colocaram em causa a dita honra dos honrados, apenas porque não viram com bons olhos que a matilha pidesca escondesse cartas na manga durante uma jogatana de poker. Preocupados com os problemas de visão dos rapazes, os honrados puseram-nos num sítio onde não teriam que puxar muito pelas retinas, dentro de caixas de madeira de pinho, bem tratada e envernizada, com 2 metros da mais produtiva terra, onde anos mais tarde cresceram viçosas alfaces e abóboras dignas do Entroncamento. Diz-se ainda que o pavor do Sr. Amilcar à palavra “Berde” é que levou a que a sigla do seu partido terminasse no “C” e não no “V” como se impunha, pois esta refere-se a Partido Africano de Independência da Guiné e Cabo…… Verde!!

Estas e outras coisas vêm-me sempre à cabeça quando me lembro do dia em que me foram buscar a casa para me apresentar ao Serviço Militar. Refira-se que uma das “outras coisas” que me vêm à cabeça é a mão da minha imaculada esposa, que é rapariga pouco dada a nostalgias militares, visto ter perdido um ente querido durante a Guerra do Ultramar. Um tio dela, após uma noite bem regada a carrascão tinto, caiu do carro de bestas e aterrou com o nariz num porco-espinho. Ficou com pêlos a mais nas narinas e esvaiu-se de muco nasal. Foi morte imediata e se é verdade que isto se passou na Serra do Caldeirão, não é menos verdade que foi no Verão de 1970, quando em terras de Eusébio da Silva Ferreira o exército português colocava em marcha a Operação Nó Górdio nas planícies de Gungunhana. Para a minha excelsa esposa ficou como um Trauma de Guerra. Para mim como uma fonte inesgotável de belinhas na testa.

Bom, mas se há dia que eu não esqueço é aquela tarde em que eu estava a mudar a jante ao meu pneu do carrinho de mão quando a minha mãe me sussurrou baixinho “ÓOOOHHH TINO!!! Estão aqui 2 pessoas para falar contigo”. E estavam, eram o Minervino e o Tamagnini que mal me viram, afiambraram-me tal calduço no cachaço que me racharam a omoplata esquerda. De bónus ganhei 1 mês de cama e 2 gotas nos ouvidos de 3 em 3 horas, porque afeminei loucamente antes, durante e depois do grito de dor do osso a rachar e ainda hoje sinto um leve zumbido no ouvido. E para ser sincero, recordo melhor este dia do que aquele em que me fiz à estrada, a caminho da vida adulta, com uma trouxa às costas e dois trouxas camuflados de cara pintada e ramas de silvas no capacete a agarrarem-me pelos braços. Sei que eram silvas porque no percurso casa - unimog não foram poucas as vezes que temi que me tivessem vazado o olho.

Confesso que estava em falta com exército, não era por mal, apenas aborrecimento, mas já sabia que eles iam ser pouco compreensivos para comigo. Era gente pouco dada a sensibilidade e eu percebia, quando se toma muitas vezes banho nu junto a outros homens o mínimo deslize sentimental pode ser fetal e não, quando escrevo fetal não é erro dactilográfico, apenas serve para explicar que numa situação de deslize o pobre soldado raso pode vir a acordar no meio do balneário em posição fetal e sem forças para se levantar.

Por tudo isto não foi grande surpresa para mim quando dei por mim a correr pelo bosque a fora com 2 gorilas armados à ilharga, enquanto a minha mãe lhes dirigia impropérios num, diga-se de passagem, muito apurado calão. Lembro-me vagamente de ouvir 3 dardos tranquilizantes zunirem-me ao ouvido o Hino à Alegria de Beethoven, mas muito sinceramente, apanharam-me numa altura má. Recordo-me de achar patético o facto dos impropérios saídos da boca da minha mãe serem no singular quando os meus perseguidores eram dois, mas fez-se luz na minha cabeça quando ela me laçou à corda e me agarrou de cernelha. Eram dirigidos a mim. Apesar de ainda hoje ter a impressão digital do polegar direito dela cravado na minha maça de Adão, já lhe perdoei.

Levado para o quartel, logo me apresentei ao Sargento. Quando instado a falar logo me declarei “Opressor de Incontinência”. Eu já vos disse que tenho um certo grau de dislexia? Mas desta vez eles foram compreensivos comigo e alistaram-me no Pelotão Lima, fiquei a aguardar execução de pena por ter espirrado de frente para o Sargento sem colocar a mão na boca e mandaram-me juntar aos meus camaradas. Chegado à caserna meteram-me uma piaçaba nas mãos e fiquei de serviço à latrina. Pelotão Lima era o da limpeza. Felizmente no dia seguinte chegaram as novas máscaras químicas que foram bastante úteis para me proteger do sulfato de metano que já encarquilhava os meus pulmões e ameaçava destroçar-me o intestino delgado, que o grosso resistia hoje e sempre ao invasor.

Como a justiça pode tardar mas chega, 2 dias mais tarde fui informado da minha pena. Fui condenado a enfrentar um pelotão de fuzilamento que me bombardeou com bolas de naftalina, até porque lá na tropa nunca entenderam bem o porquê de eu dizer que estava “cá com uma traça”. O que podia ter sido uma pena de extrema violência, revelou-se para mim de grande beneplácito, pois graças a esta, pude concorrer para a Guarda do Presidente da República e cumpri o resto da minha comissão de serviço no Exército Português a trabalhar no guarda-fatos do Sr. General Ramalho Eanes a afastar traças da sua farda. Ainda hoje quando o vejo todo bem aprumado na televisão sinto que há algo de mim naquela goma.

Dizem que há duas coisas que marcam indelevelmente um homem: o primeiro golo que se vê ao vivo do Benfica e o Serviço Militar Obrigatório. Nada poderia ser mais verdadeiro e se há coisas que andam sempre na minha cabeça é o Vata a marcar um golo em Portimão e as traças que ainda hoje esticam o pernil à minha passagem. Pronto só aquelas que fumam, pois têm os pulmões mais fracos.

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