O ligeiro desentendimento conjugal já durava há tanto tempo que em anos caninos já deveria ser mais idoso que o avô do Fernando Pessa, e apesar de ainda só ter motivado dois internamentos hospitalares da minha parte por ingestão abusiva de trufas, que era o som que a minha mais que tudo fazia quando encostava docilmente o seu punho naquele espaço confinado entre o lábio superior e o nariz, vulgarmente denominado por bigodame, continuava a ensombrar a vida do nosso doce lar de paredes manchadas a negro pela humidade que penetrava incessantemente pelas telhas roídas pelos elementos e pelos membros inferiores do filho da minha vizinha que insistia em se preparar para torneios de basquetebol de mesa, correndo telhado acima, telhado abaixo. Fortalecia-lhe os gémeos dizia ele, enquanto eu aguardava que uma queda lhe enfraquecesse o seu jovem filho único que vivia aconchegado dentro das cuecas ali bem perto, na Rua do Baixo Ventre.
Tudo começara com a decisão de aprisionar a minha malfadada sogra num lar, a fim de me possibilitar acordar ao por do sol em dias de trabalho, o que não era possível com ela cá em casa, pois tinha o estranho hábito de convidar ex. colegas de escola para virem todos os dias jogar partidas de sueca enquanto se alambazavam do meu stock de tortas de chocolate e ananás. Quando foi colocada a hipótese de, em troca de momentos de paz, empenharmos algumas das poupanças que a velha arrecadara ao longo de anos de trabalho árduo a contar grãos de milho para encher pacotes de pipocas antes, durante e depois de sessões de cinema para maiores de 18 anos num tabernáculo sem janelas nem balcão, onde as bebidas eram servidas em cones de páginas amarelas e as moelas tinham sempre mais de 15 dias, fui colocado entre a espada e a parede. Nas palavras daquela com quem eu partilhara juras de amor eterno, se o caquéctico ser vivo fosse deslocado para o depósito dos iguais a si, a cadela de estimação ou roedor amestrado da minha mais que tudo teria direito a pernoitar no nosso leito de amor, bem entre os dois cônjuges. Chegados a esta situação terminal, qual grilo a quem é entregue a chave do cadeado da gaiola, que não consegue utilizar por não ser provido de polegares oponíveis, optei pela decisão que proporcionaria menor dano à minha, já se si enferrujada, qualidade de vida. E a caniche de espírito felino e unhas arrebitadas passou a babar a sua viscosa saliva na minha almofada e a forrar a pêlo encaracolado, se bem que sedoso, o interior das minhas narinas.
Infelizmente foi aqui que os reais problemas começaram, quando muito simpaticamente atiramos o andarilho da mulher para a porta do lar e elevamos os decibéis da voz para a convidar, muito cordialmente, a abandonar o nosso automóvel, ao mesmo tempo que lhe entregávamos 20,00 Euros para uma injecção letal, caso ela decidisse que seria esse o seu digno final. Perante a insistência da enfermeira de serviço, mulher de modos viris, que havia fugido à vida de pobreza e fome do Dubai para se alojar neste antro de riqueza e vastidão de recursos, verdadeiro apogeu da civilização moderno-quinhentista, fomos obrigados a deixar um número de telefone para que a progenitora da minha esposa nos pudesse contactar. Imbuído de espírito familiar e desejoso de manter contacto próximo com a execrável mulher, rabisquei um número falso no primeiro cartão que encontrei e entreguei à famigerada funcionária. Mais tarde, de regresso à paz do lar fui surpreendido por um telefonema que toldou para sempre os dias do nosso, já de si tumultuoso, ninho de ácaros. Aparentemente eu havia fornecido um número falso à enfermeira num cartão-de-visita meu, onde constava o verdadeiro número. E ainda mais aparentemente, os 20,00 Euros destinados a garantir um rápido sono eterno, haviam sido esbanjados em gomas por aquela que um dia havia inspirado a produção do Pac-Man.
Desde então, muito se tem discutido neste lar à beira da via rápida plantado a fim de alterarmos o número de telefone para acabarmos com os telefonemas que já duram há 3 anos, a convidar-nos para uma sacramental visita ao seu local de repouso.
A vez que estive mais perto de convencer a minha amada a dar ouvidos aos meus argumentos foi quando consegui que a decisão ficasse dependente de um torneio de arrotos. Inicialmente vitorioso do mesmo torneio, já me encontrava a caminho de uma loja de conveniência da nossa operadora telefónica quando fui surpreendido pelo chamamento da minha cara-metade. Ela descobrira que eu havia ingerido uma lata de Coca-cola e uma botija de hélio antes da disputa, pelo que fui desclassificado por doping e tudo voltou à estaca zero.
Contudo agora os meus argumentos tomavam maior força. Ao fim de 3 anos as poupanças da idosa tinham esgotado, pois não eram tantas que pudessem suportar a mensalidade do lar e a minha muito prosélita vida boémia, de intermináveis noites regadas a meias de leite, quentinhos galões, ou, nos dias de maior fraqueza mental, saborosos sucos de goiaba dinamarquesa nas mais finas pastelarias dos arrabaldes da grande aldeia que é a minha marquise. Talvez a devesse ter colocado a trabalhar em vez de a condenar ao desterro. Há decisões que nos marcam a vida e esta, juntamente com outra anos antes em que, pensando que a rapariga estava em completo coma alcoólico, ou como dizia o barman, em falecimento alcoólico, pedira a filha da velha
Uma vez que a mensalidade tardava em dar entrada na generosa conta do lar, fomos contactados a anunciar a devolução do espécimen. Pediam-nos que fossemos recolher o que nos pertencia pois já se tinham dirigido à morada que havíamos deixado aquando da descarga do entulho, mas que lá não residia nenhum familiar da supra citada individua, o que me deixou perplexo, uma vez que a morada era da Penitenciária e era mau sinal não haver nenhum familiar da mulher lá encarcerado.
Basicamente isto queria dizer que a sua filha mais nova tinha sido libertada antes do final da sua pena de 25 anos a que havia sido condenada por roubo de uma peça de um puzzle de 55.000 peças, crime esse que se abateu sobre a nossa comunidade de tal forma que num apartamento contíguo a nossa casa, uma senhora, revoltada e revelando quase total perda de juízo, desenhara um bigode na cara do Presidente da Republica, que vinha estampada numa revista cor-de-rosa. Refira-se que a pena fora agravada pela circunstância de o acto ter sido perpetrado quando restavam menos de 13 peças para completar o quebra-cabeças, que, devido à ocultação da prova, continua inerte com 54999 peças, assente numa sepultura, sob a inscrição “Aqui o meu dono jaz. Tentou fazer-me mas agora não me faz”.
Esta informação encerrava em si boas e más noticia. A boa é que ficava feliz por finalmente, ao fim de 15 anos, ter sido provada a inocência da minha cunhada. A má é que eu havia sido testemunha de acusação, vital na sua condenação e ela havia prometido vingança dolorosa, que envolveria toda uma panóplia de objectos de corte com lâminas rombas para maior dificuldade de corte bem como quantidade industriais de xarope para a tosse e bacalhau à Braz, quando era retirada do tribunal presa num colete-de-forças. Em minha defesa tenho a dizer que o fato de treino que a irmã da minha princesa usava no dia do roubo era bastante parecido com o babygrou do bebé que, tal como mais tarde se veio a confirmar, perpetrou o sanguinolento crime.
Agora colocados perante estes novos pressupostos, a questão da mudança de número de telefone tornara-se pacifica. A questão que se levantava era a de mudar de morada, a bem da nossa saúde mental e da minha saúde física. As constantes gargalhadas que saiam da boca do meu amor de cada vez que eu puxava o assunto sugeriam-me que já só a minha saúde física poderia ser salva.
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