domingo, 7 de outubro de 2012

O Teatro

À hora marcada nos cartazes colados nas paredes virgens do Bairro Social ainda por inaugurar com cuspo laganhoso recolhido durante quatro longos anos em bancos de suplentes de equipas de basebol que disputaram o Campeonato de Veteranos das Minas de Amianto, uma buzina industrial ecoa com estampido pela sala anunciando a paragem da produção operária no ramo da obliteração bilhética. Ao mesmo tempo a sala é invadida por paramédicos para socorrerem um espectador em paragem cardio-respiratória na primeira fila e um outro com surdez momentânea sentado junto a uma coluna de som. Entretanto já circulam pelo amontoado de cadeiras várias meninas em trajes de can-can segurando sobre os volumosos peitos largas bandejas pejadas de pacotes de frutos secos, pipocas e peta zetas, para conforto de estômagos cujo tamanho já só seja medido em escalas de grossura de papel cavalinho, bem como de pacotes de preservativos para todos aqueles para quem o conforto desejado seja mais de foro intimo carnal. O diminuto tamanho das bandeletes usadas à cintura como único vestuário pelas meninas de can-can. deixa patente que neste auditório será mais fácil dar sumiço ao desejo carnal do que receber troco pelo pagamento de um pacote de amendoins torrados descascados banhados em mel de abelha africanizada. 

Apagam-se as luzes, sobe o pano e em palco vislumbram-se dificilmente as figuras de Constantino e Esposa sentados no que parecem ser duas cadeiras de praia em frente a um móvel de televisão apenas adornado com um rádio de dois decks de cassete abandalhadamente poisado sobre um naperon oitentista. Uma toalha sobre o que ao longe parecem ser dois caixotes de papelão empilhados, simula uma mesa que separa ambos os seres humanos e junto da Mais-que-Tudo a silhueta de um cão salta á vista. Supostamente é o caniche do casal, mas o seu tamanho, imobilismo e ligeiro brilho ao toque da ténue luminosidade revela à audiência tratar-se de um cão-de-loiça em formato São Bernardo cuja única semelhança com o pustulento animal de colo que por vezes partilha o leito de repouso dos donos, é o tamanho do barril que traz ataviado ao pescoço. Não fosse o caso do Técnico de Adereços estar hospitalizado ainda em convalescença de um canino ataque no canil local quando fazia castings para o papel de “cão” e talvez a ordem de despedimento do mesmo já pudesse ter sido acertado com o Presidente da Companhia TRAZ, abreviação de Teatro Ridiculamente AZelha, devido a deficiente desempenho da actividade laboral, avaliação para a qual contribui sobremaneira a fita adesiva laranja florescente que se vê do último balcão, a segurar uma das patas da cadeira de Constantino. Entre pedidos de silêncio da plateia e pom-pons de chearleaders, o espectáculo tem início: 

Donzela, enquanto afaga o toutiço cerâmico do cão – nem consigo acreditar no que estou a ouvir. 

Constantino, levantando os olhos do tampo da mesa, onde crava com a ponta de um canivete suíço comprado numa loja de roupa para crianças a chave do totobola – experimenta tirar esses edredons que tens a tapar os ouvidos e talvez oiças melhor. 

Princesa, de olhar perdido num cortinado cor pastel que tapa uma suposta janela – o silêncio é constrangedor. 

Constantino, de olhar fixo, frio e penetrante na entrada dos bastidores onde o adjunto dos Adereços manobra desastradamente com a boca a sua cadeira de rodas – pois, se ao menos o cão ladrasse. 

Cai o pano sobre o primeiro acto, literalmente. O varão feito de pontas de esparguete cozidas que suporta as cortinas cede ao peso do carpinteiro que por ele trepava a fim de barrar o mesmo com molho de bolonhesa para o lubrificar à passagem das argolas. Mais tarde o relatório de autópsia do operário realizado por três conceituados chef’s irá revelar que o excesso de cozedura desproveu a massa italiana de elasticidade e sustentabilidade eliminando por completo as suspeitas que recaiam sobre a qualidade do molho de tomate, que muitos injustamente acusavam de ser apenas ketchup. A queda do pano deixa a nu a superfície felpuda que cobre o tórax de Constantino, uma vez que no momento do acidente ele se encontra a mudar de fato-macaco. Após a retirada de entulhos e restantes detritos, incluindo uma orelha lascada do bibelot animal que perece ao impacto do tecido de fabrico egípcio, sobe ao palco um espectador para de surpresa dar um concerto de gaita-de-foles. Na verdade a gaita-de-foles não tem fole, pelo que é apenas um pífaro. No final da actuação o espectador vira as espaldas ao público, dobra a pélvis e levanta o kilt. A palavra “free” aparece tatuada na nádega esquerda e a palavra “dom” revela-se pujante na nádega direita. Confirma-se que o individuo é escocês e da plateia começa a ouvir-se em uníssono desafinamento e numa muito mal conseguida tentativa de pronunciamento escocês os versos da “Auld Lang Syne”. 

Nas primeiras filas a agitação é constante perante o desejo de colocar os olhos, e quem sabe vir a conhecer Chen Guang Cheng, dissidente chinês e um dos principais responsáveis pela publicação do “Livro Vermelho” de Mao Tsé Tung, que está sentado na terceira fila, junto ao corredor para mais facilmente aceder aos lavabos e saciar os desejos da bexiga incontinente que se aloja há uns anos no seu corpo de tez amarelada, excepto nas costas onde a cor da preguiça sucumbiu ao negro do cicatrizamento de golpes de chicotes feitos a partir de folhas de listas telefónicas para não deixar marcas. Foi um destacado encadernador da gráfica onde o livro foi produzido e é reconhecido como o individuo que teve a ideia de o encadernar em capa dura para poder servir de suporte para copos de sumo de bambu em piqueniques nas montanhas de Minshan. Aproveitando a sua cegueira derivada de ter sido ele o revisor de texto de todos os “Livros Vermelhos” produzidos, a seu lado senta-se um monge budista tibetano radicado em Teerão, onde desempenha funções olheiro ao serviço das melhores madraças do país, fornecendo aconselhamento psicológico e executando testes psicotécnicos junto de escolas secundárias e algumas universidades a fim de recrutar os melhores terroristas suicidas do país. 

Entram os actores para o segundo acto, saltando à atenção o sorriso alaranjado de Constantino. De facto o confuso término do primeiro acto custou-lhe a perda dos dentes postiços, pelo que em seu lugar traz na boca um quarto de laranja, o que lhe dá um ar de quem acabou de almoçar um pote de lava fundente acabadinha de afundar em cinzas uma qualquer localidade piscatória numa ilha do Pacífico. A Mulher-da-Vida dele mantém o ar áspero de quem sabe que o melhor amigo do homem não é facilmente substituído por uma peça de faiança, por muito que esta não tenha em si motivos fálicos. A mesa também danificada na refrega foi agora substituída por um par de grades plásticas de cerveja. O burburinho que ecoa dos bastidores não deixa dúvidas de que o conteúdo das grades já foi alegremente consumido. O segundo acto tem início sem que a maior parte da audiência tenha voltado do bar, onde assistem a uma declamação de poesia islandesa, obra e graça de um norueguês nostálgico da língua original do seu país. 

Amorinho, enquanto simula um entrançar de cabelo, impossível desde que o encenador lhe rapou o cabelo à máquina zero como praxe por ter sido aceite para este papel – (silêncio) 

Constantino, levantando-se do chão após queda aparatosa por tropeção no pífaro encardido deixado para trás pelo escocês – (silêncio) 

Ligam-se todas as luzes do auditório e o rádio em cima da mesa de televisão começa a debitar bem alto sons de electricidade estática entrecortados por breves interrupções de comunicações via walkie talkie entre a governanta do hotel localizado a duzentos metros da sala de espectáculo e uma sua subalterna. Entre contagens de peúgas e camisas é perceptível que se trata da lista de roupas a entregar na lavandaria. 

Constantino, limpando o pó das calças, cujo padrão xadrez azul e laranja fica agora visível a todos os que pagaram por um lugar sentado – até que enfim o piquete da companhia eléctrica resolveu a avaria. Desliga o rádio e as luzes e vamos deitar. 

Cai um toalhete com aroma a mentol sobre o segundo e último acto. A Donzelinha Linda continua em palco, onde se deixou dormir encostada a um dos pilares em papier maché que segura a estrutura onde ficou colocada a Orquestra Muda que muito contribuiu para o silêncio constantemente afinado durante o espectáculo. Constantino em três passos coloca-se na frente do palco e faz uma vénia às numerosas cadeiras já vazias após a deserção dos seus prévios ocupantes em direcção ao bar onde estão a oferecer cálices de natas azedas sobrantes dos galões tirados ao intervalo. O espectáculo terá excelentes criticas com toda a certeza.

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