quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

A Memória

Ah catano, ele há coisa que um tipo nunca mais esquece, outras pelo contrário nunca mais nos lembramos e desaparecem da memória como pílulas do dia seguinte por alturas de Semana Académica..
Até parece que foi ontem que fui atingido pelas ondas de choque emitidas pela minha mãe lá da varanda onde pendurava as ceroulas do meu velho na corda para evaporarem as humidades e cheiros de uma lavagem com água e sabão azul: “ahh bicho dum camano. ‘Stantino, vai-te-me masé à loja dos cabedais comprar uma coleira pró raistaparta do gato da tua irmã que ele já se me foi às nêsperas outra vez”, pigarreou ela. Sem pensar duas vezes lá me dirigi à loja onde o ti’ Marques Choco, entre umas valentes goladas de aguardente de medronho caseira feita à base de coirato fumado, inspirava diariamente cheiro a bedum e sebo, que aplicava cuidadosamente nas botas de cabedal enquanto a sua mente divagava pelas coxas da senhora Erminia, cujo marido havia falecido 5 anos antes, após uma reacção alérgica a um tremoço, enquanto ouvia o relato de um jogo de 3 em Linha na telefonia, segundo conta a viúva. Quando saltei o portão emperrado de ferrugem do nosso minúsculo latifúndio onde a erva daninha se desenvolvia como míldio nas batatas, estes pensamentos emaranhavam-se na minha cabeça com a chave do Totobola onde me inclinava para apostar numa tripla 1X2 para o jogo em que o Aberystwyth recebia no seu estádio o Caernarfon na 20ª jornada do Campeonato Galês.
Ao aproximar-me do edifício onde o ti’ Marques Choco tinha estabelecido o seu meio de subsistência dei de caras com um cenário algo estranho, aliás, completamente surrealista, pois um grande cartaz exposto na galera de um camião Tir anunciava uma exposição com pinturas de Salvador Dali e René Margritte a decorrer nas carrinhas cor de tijolo da Biblioteca Itinerante, portanto só acessível a quem tivesse cartão de sócio das Bibliotecas Calouste Gulbenkian. Na rua uma sonora manifestação juntava de um lado da barricada a ILGA e a Sociedade Portuguesa de Sado-Masoquismo e do outro a Liga Portuguesa dos Animais, cujos elementos tapavam as vergonhas com alfaces e papo-secos, enquanto vociferavam palavras de ordem contra o uso de peles na produção das vestes de Drag Queens e de roupas bondage. À porta do seu estabelecimento comercial ti Marques Choco não poupava nos apupos aos “alfaces”, acusando-os de serem maus para o negócio, o que lhe viria a custar mais tarde duas vitrinas estilhaçadas no pavimento de calçada típica portuguesa e umas calças de cabedal, roubadas por um dos defensores dos animais, após ter perdido a sua alface numa acesa disputa com uma chinchila fugida de sua dona e esfomeada.O espanto perante tal cenário foi tal que a minha memória bloqueou, pelo que se me varreu da ideia o propósito da minha visita aquele local e regressei a casa sem a famigerada coleira para gatos que me havia pedido a minha mãe. Na altura não me pareceu um esquecimento grave e revelava-se bastante útil para mim, pois com o gato à solta podia continuar a devorar a meu bel prazer a nêsperas que povoavam a única árvore do quintal, cuja copa esvoaçava bem junto à janela do meu quarto, com a mesma densidade populacional de Shangai.

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