quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

O Casamento

Molhei a peúga. É certo que tive uma noite muito mal dormida resultado de um corte de cabelo caseiro, com a camisola do pijama vestida, na qual se alojaram agulhas que outrora haviam sido afiadas diariamente pelo meu pente e que me picotaram o pescoço durante toda a noite, mas nada desculpa a minha falta de pontaria matinal, falhando o recipiente para a descarga de ácido úrico, numa função que até o caniche da esposa já executa sem problemas. Era difícil começar pior um dia que já não augurava nada de bom, era o dia do casamento do casal em cuja casa a minha mais que tudo fazia as limpezas e areava os latões.
Casal já em fase final de vida, Gregório e Domingas haviam-se conhecido no Ultramar, mais especificamente no Planalto do Bié, onde o futuro esposo era limpa neves desempregado e sua cônjuge era cantora, sendo que só exercitava a voz na gravação de mensagens para atendedores de chamadas. Após a Revolução regressaram à Metrópole onde viriam a enriquecer gravando toques polifónicos para telemóveis atingindo finalmente a independência financeira que lhes permitiria o feliz desenlace.
Á entrada da Igreja lá se encontrava o costumeiro vendedor de cachorros, apregoando uma sopa de cogumelos acabada de fazer ao que eu escolhi um Combi de pipocas com molho de peixe tailandês e um copo de tinto da Bairrada, o sangue de Cristo. Uma vez lá dentro ainda me arrependi da minha escolha, afinal por entre os bancos andava um indivíduo a vender pacotinhos de hóstias, simples, com chocolate ou com doce de laranja. Ainda fui a tempo de provar este doce conventual, pois o pobre indivíduo tinha uma estrutura tal que me fez acreditar que passava os dias a experimentar o sabor do que vendia, movimentando-se com grande dificuldade pela Igreja lotada e dando-me tempo para terminar o milho frito.
Presumo que o casamento não foi um sucesso, pelo menos não teve ovação de pé. A coisa começou logo mal, pois por um qualquer engano o padre contratado era um Rabi israelita cujo único som que abandonava as suas cordas vocais de forma a ser perceptível ao comum português era um muito arranhado “muito bem”. A verdade é que só no dia anterior à cerimónia é que os noivos deram conta da gaffe, pelo que o casamento saiu em playback, com as palavras a serem projectadas do leitor de CD para as colunas da Catedral enquanto que o Rabi Isaac movia os lábios numa mímica muito chaplinesca à qual só faltava o guarda chuva. O logro só foi topado pelos que ocupavam as cadeiras da frente, que logo ali soltaram uma leve demonstração de desagrado, que viria a aumentar quando os presentes foram informados que por motivos profissionais o noivo não iria comparecer ao casamento, pelo que em seu lugar estava um televisor LCD onde era transmitida uma filmagem caseira onde Gregório seguia todos os passos até ao “sim” final. Por obra e graça do destino, o DVD encravou logo na altura da palavra afirmativa, talvez devido a alguma poeira desmancha-prazeres. Este infeliz acontecimento marcou o final da cerimónia com os espectadores a partirem em debandada rumo ao Estádio Municipal, onde a agremiação local disputava jogo decisivo para a permanência na 2ª divisão distrital. Para mim foi tempo de regressar ao lar, que ainda tinha umas caleiras para limpar antes que chegassem as primeiras chuvas de Setembro.

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