quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

O Tomané

Acidentes acontecem a todos, mas a uns com mais frequência que a outros. Ao Tomané acontecem com a mesma frequência com que um doente de Parkinson treme o braço e entorna o copo com urina para as análises. O primeiro azar de que há memória envolvendo o “mártir de Bela Curral” foi precisamente quando ele deu por terminados os 9 meses de gestação e um fórceps nas mãos de uma parteira de qualidade duvidosa resultou num nariz à espera de cirurgia plástica para o resto da vida. Outro episódio a roçar o estapafúrdio deu-se quando foi viver sozinho num pequeno T0, depois de ter abandonado o lar matrimonial só com a roupa que trazia vestida e um necessaire com desodorizante e pensos higiénicos, revoltado com o tamanho das unhas dos pés da sua querida. Num ataque de dona de casismo, pôs a sua camisola do Sporting a lavar juntamente com roupa vermelha, tingindo o manto da vergonha com a cor sagrada. Uns dias depois, quando se candidatava a um emprego numa empresa de cablagens para automóveis, descobriu ser daltónico, sendo essa a única razão que fazia dele um vil lagarto, pensava que o equipamento era vermelho. Desde então diz-se adepto da briosa Académica, o negro das capas não dá azo a grandes confusões, excepto a tenebrosa mania de andar sempre de luto, recolhendo pêsames por todas as tascas e tabernas de que é frequente utilizador.
Desta vez a coisa foi grave, pelo que teve que ser internado, obrigando-me a pôr de lado uns pipis a escorrer em óleo vegetal e um chá de hortelã que eu consumia desenfreadamente na companhia da minha muito honrada esposa para o ir visitar á casa de saúde onde ele se encontrava a usufruir de cuidados médico-paliativos, decorrentes do facto de, à fuçanga de comer um bife de touro regado com um copito de Visconde de Borba, ter ficado com uma bandarilha encravada na garganta e outra já a caminho do baço, com o recto como objectivo a médio prazo, motivando o pobre Tó a optar por uma prisão de ventre voluntária, não fosse o diabo tecê-las.
Após uma breve viagem de elevador na companhia de uma idosa que gemia ao mesmo ritmo que respirava e uma enfermeira que exibia orgulhosamente a sua mono sobrancelha e o nariz perfurado de onde pendia uma pequena caveira, capaz de destruir qualquer fantasia sexual que me pudesse ressaltar no córtex, encontrei o Tó num quarto com mais 3 pacientes, num estado tal de introspecção que o julguei vegetativo. Preso ao braço a agulha que lhe providenciava, pela primeira vez em 10 anos, um liquido não alcoólico, criando-lhe conflitos insanáveis no organismo, mais habituado a géneros destilados.
A visita durou 2 minutos, tempo suficiente para me pedirem para abandonar o quarto pois um dos pacientes jazia morto na sua cama e era necessário proceder à transladação do mesmo para uma das câmaras frigoríficas da morgue. Durou tão pouco que ainda cheguei a casa a tempo de levantar a mesa e atirar ilegalmente os ossinhos dos pipis à caniche na esperança de que esta tivesse o mesmo triste fim do Tomané.

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