quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

O Festival

E de súbito tive uma visão. O momento era deveras propicio, tinha acabado de assentar os meus óculos no nariz, única forma de passar por cima do astigmatismo que me turva a visão de longo alcance, não me permitindo, entre outras coisas, decifrar a matricula do carro que passa por mim a alta velocidade e me esguicha água lamacenta de uma poça de dia de tempestade para a camisa branca antes de uma entrevista de emprego. Neste caso através dos fundos de garrafa fiquei a saber que a banda El Dueto de Tres, verdadeiros ícones da musica popular peruana, artistas da flauta de beiços em cana de bambú e presença habitual numa qualquer rua das lojas do nosso pais, se ia apresentar em palco no Festival Internacional de Pesca do Pato, em Alcongosta. Este era o momento que eu sempre esperei.
Feita a barba e colocados os respectivos pedacinhos de papel higiénico nos cortes originados pela pressa e por uma lâmina romba com 3 semanas de utilização, preparei o farnel com 2 sandes de paio e uma lata de dobrada de feijão, não sem antes acomodar o bucho com 1 paposseco recheado de mortadela e regado com leitinho com mel, seguido do qual me fiz à terra batida.
A caminho, entre uma mudança de pneu e uma paragem para arrefecer o motor, ainda me lembrei de que não tinha aberto a porta da nossa minúscula dispensa para deixar o caniche ir fazer as necessidades à rua, o que normalmente significava cheiro a Ria em hora de maré baixa para o resto da semana, mas nesta altura já não ousava voltar para trás e correr o perigo de ver o meu carro cuspir o seu último trago de dióxido de carbono para a atmosfera antes de eu conseguir vislumbrar o nariz torto de Paco Bilha esse ícone da música.
Paco Bilha era unânimemente reconhecido como o cérebro do grupo, apesar de as frequente entrevistas concedidas pelos três magos da música nos fazerem pensar que eles dividiam o mesmo cérebro, entre todos. Nascido nos confins dos Andes, Paco era sem dúvida o melhor tocador de pífaro do Mundo, beneficiando do facto de não ter dentes à frente o que lhe permitia ter um encaixe perfeito para o bocal do instrumento e conferir ao som um vibrato único e bastante apreciado por todos os descendentes dos Incas.
Martin Del Cano, por sua vez assumia-se como o elemento mais discreto do grupo, parecendo por vezes até invisível, fruto do facto de ser anão o que fazia com que as pessoas tivessem grandes dificuldades em vê-lo manejar a concertina caso estivessem um pouco mais distantes do palco.
O terceiro elemento do dueto era porventura o mais peculiar. Juanito Talento, na realidade possuía poucas doses do mesmo, devendo o seu nome a herança familiar, do lado paterno.
Desde cedo que Juanito revelou queda para a música o que lhe valeu 3 dias de internamento no Hospital de S. Maria após ter caído de um palco, onde actuava José Malhoa e a sua pequena filha. Juanito na verdade é português, tendo emigrado a salto para Espanha nos anos 60, onde aprendeu a tocar castanholas, apesar de ser maneta pois tinha sido vitima de um atentado da ETA, vendo uma bomba escondida numa alheira de Mirandela explodir-lhe na mão num talho em Oviedo. Mais tarde ainda concorreu aos Ídolos, mas uma apoplexia no momento do casting retirou-lhe a hipóteses de actuar no Tivoli e, quem sabe, gravar um cd.
Todos estes factos se revelaram impossíveis de confirmar, pois o meu desconhecimento do caminho para Alcongosta levou a que, volta e meia, me tenha visto rodeado de neve e pessoas com um sotaque estranho e algo parecido a ursos de peluche na cabeça. Inicialmente ainda pensei que havia regressado a Almancil, mas afinal estava em plena Praça Vermelha, no coração de Moscovo.

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