quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

O Dia

Começou-me mal o dia e quando assim é, só me resta esperar pelo pôr do sol para voltar a arrastar os costados até à cama e espojá-los nos ácaros que habitam os lençóis coçados e desbotados que me cobrem o colchão matrimonial.
Tudo começou ao acordar, momento em que fui surpreendido por dois despertadores tão sintonizados como aquelas miúdas, que, quais avestruzes aquáticas, afundam a cabeça na piscina e fazem figuras geométricas com as suas bem torneadas pernas, cuja utilidade só é comparável à dos tampos das jantes nos automóveis, pois exibem grande beleza visual mas se lá não estivessem o veiculo movia-se com a mesma eficácia, para além das energias que consomem a quem as tenta descolar para mudar a roda após um inoportuno furo durante uma noite de tempestade biblica. Como agravante, a minha fiel esposa, num assomo de stand-up comedy obtuso, esconso e com foros de surrealismo Monty Pytoniano esforçava os seus alvéolos pulmonares no banho numa triste tentativa de interpretar a “Nikita” do Elton John com a voz esganiçada e desafinada de um chimpanzé enquanto cata piolhos a outro ser da mesma espécie na copa de um Baobá na tropical savana africana.
Senti que a única forma de fugir à tormenta que se tinha abatido sobre a caravela a que chamo “minha vida” era virar à esquerda na primeira almofada e retirar-me estrategicamente para fora do quarto, qual Jesus que após oferecer a outra face à mão estalajadeira, sente a impotência de ter nascido com apenas duas bochechas e tenta evitar a palmada repressora de um qualquer José carpinteiro na nádega marcada pelo tampo da sanita onde horas antes esvaziara uma intoxicação alimentar derivada de uma sandes de presunto mal fumado, sem puxar o autoclismo.
A fim de me vestir, agarrei numa peúga e tentei calça-la. Debalde, senti um baque tal que pensei que o baço e o fígado tinham trocado de lugar como se estivessem a jogar alegremente ao elástico no recreio da escola primária, entre um gole de iogurte liquido e uma baforadela num cigarro de chocolate às escondidas. Ao retirar a peúga reparei que esta, devido à rigidez resultante de utilização ininterrupta ao longo das últimas duas semanas, me tinha esfolado o joanete. Como medida preventiva decidi-me a despir também as cuecas, às quais tanto me tinha afeiçoado no último mês pelos serviços tão competentemente prestados, por recear que estas pudessem agredir-me nas partes pudibundas cuja pele não está tão calejada e portanto mais frágil e sensível ao toque do que a dos membros inferiores, mais habituada ao contacto físico com a tijoleira Santa Catarina, aveludada pelos pêlos do caniche, da habitação de três assoalhadas que divido com a minha esposa, desde que ela aceitou ser minha consorte.
Batida com estrondo a porta de casa vi-me impossibilitado de utilizar o elevador pois a porteira havia sintonizado a aparelhagem que fornece a musica ambiente ao habitáculo móvel na Rádio Celtibera de cujo posto emissor zurravam as gaitas de foles dos “Viri & Athus”, banda originária do Huambo, mas radicada em Alcongosta e que defende a nacionalidade angolana do grande guerreiro Lusitano. Desprovido de todo e qualquer sentimento de índole sado masoquista, vi-me obrigado a alcançar o rés do chão através do vão de escadas do prédio, onde os interruptores eléctricos mais não serviam do que para reter impressões digitais e epiteliais daqueles que tentavam, sem sucesso iluminar os candeeiros que tão habilmente decoravam o tecto do fosso das escadas.
Em três penadas pus-me a caminho do café da Ti Marquinhas, onde tinha marcada uma entrevista de trabalho com Crisanto Filomeno, director-jornalista-gráfico-ardina do jornal “Voz de Vós”, que me queria oferecer metade de um ordenado mínimo do Botswana para eu tomar as rédeas do Jornal bem como ficar responsável pela coluna “A Cozinha e os Detergentes da Loiça”, tendo a meu cargo a detecção de todo e qualquer furo jornalístico dentro do nicho de mercado que são os detergentes domésticos, com particular incidência aos utilizados nos lava loiças e máquinas de lavar loiça do país. Seria igualmente responsável pela redacção na ausência de Crisanto, o que iria suceder já a partir desse momento pois ele preparava-se para emigrar para as Ilhas Tonga onde iria trabalhar como jardineiro no parlamento local, bem como por toda a parte gráfica, de edição e distribuição deste semanário trimestral que saíra para as bancas uma vez nos último sete anos.
A verdade é que toda a eloquência que ele revelara ao telefone e que me havia convencido a aceitar o emprego se esvaiu quando entrei no salão do café e ouvi um sonoro arroto de creme de cebolada ecoar da mesa onde Crisanto me aguardava vestido só com umas ceroulas rotas junto ao joelho esquerdo e um cachecol de lantejoulas a tapar-lhe os mamilos, que, saltava à vista, não seria dele mas talvez de sua esposa, pois esta jazia deitada de bruços no chão, despida da cintura para cima, apenas com uma garrafa de Palinka na mão. Naquele momento decidi que este ainda não seria o emprego para mim e que o melhor era dirigir-me a outro estabelecimento de restauração, pedir uma mini e um pratinho de tremoços e aguardar que o dia passasse, porque realmente a coisa não estava a correr nada bem.

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