quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

O Vinho

Deixei-me dormir no sofá enquanto descascava um saco de asas do Modelo cheio de favas e ervilhas, à espera que deixasse de chuviscar na televisão e voltasse a emissão regular, que havia sido interrompida durante a transmissão do documentário “Os Pernetas e a Podologia, ou a vã esperança de criar bolhas nos pés” que contava com o lancinante testemunho de Virgílio Cepeda, barbeiro uni sexo de profissão e podologista nos tempos livres por influência do pai, campino na zona de Alcoutim, que o ensinara a mudar as ferraduras aos cavalos.
Este súbito baque de sono fez com que me esquecesse de programar o alarme para acordar no dia seguinte, para o qual eu tinha reservado a manhã para ajudar a fazer vinho, o sangue de Cristo, na adega do Ti Lopes, repetindo assim uma tradição que muito me aborrecia. Apesar do tardio despertar, rapidamente me pus a caminho da adega, que fica relativamente perto do meu lar, pelo que fiz o caminho a pé, não demorando mais do que 2 horas de caminho.
Ao chegar à porta do barracão onde se pisava o fruto da videira, descortinei através das lentes dos meus óculos, cravadas de mosquitos qual pára brisas de autocarro de 55 lugares na A1, uma rapariga roliça, bem arregimentada de barriga, apesar dar evidentes carências dentárias e de pernas tingidas de azul que ocupava o meu local no cordão humano que transformava em néctar dos deuses os berlindes da natureza, ao ritmo de Bob Marley, aproveitando o típico movimentar de pernas da dança reggae para massacrar a fruta.
De ar já meio grogue e de passada desconexa aquando do meu primeiro olhar, foi sem surpresa que a vi sucumbir, passados alguns minutos, ao álcool que se libertava do mosto em direcção à atmosfera. Caindo desamparada no que outrora decorara as vinhas, por pouco não se afogou, sendo o seu peso um óbice ao salvamento sendo necessário recorrer ao egrégio método da roldana para elevar o peso morto da substância que iria, mais tarde, animar jantaradas e almoçaradas pelo bairro fora. Uma vez fora do lagar, permaneceu durante largos minutos inconsciente enquanto os restantes presentes discutiam, acerca de quem iria fazer respiração boca a boca, retraindo-se todos perante a cara azulada, atacada pela cárie dentária e com grainhas a sobressaírem dos cantos dos lábios. Felizmente nem uma pessoa inconsciente consegue aguentar o cheiro libertado pelos cigarros de barbas de milho, baforados pelo senhor Domingos da Chafarrica e a rapariga deu sinal de vida, menos vivaça que dantes, mas com o sistema respiratório em funcionamento.
Recuperado o meu lugar de direito, fiz-me ao lagar com tamanha fuçanguice que levei 2 minutos a reparar que me encontrava a pisar o alguidar onde jaziam as batatas cozidas que iriam ser servidas ao almoço. Como na natureza nada se perde e tudo se transforma, dona Irina aproveitou o puré, destilou-o no alambique e de lá fez vodka para aquecer as noites em que o seu Manuel teria que ficar a trabalhar até mais tarde na taberna do casal, privando-a assim de companhia ao adormecer.
Entretanto lá fora o tempo encrespava-se, largando sobre o barracão tamanho aguaceiro que logo deixou a descoberto a falha no telhado de lusalite que pingava justamente no local de onde esperávamos que fosse erigida uma pinga que nos animasse as noites e os dias. O sucessivo pinga pinga tornou o que seria um Vintage de 18 graus num palhete de fraca qualidade, mais capaz de servir para refogado que para ser servido à mesa. Isto comprovamos nós num faustoso repasto, depois de lavarmos o corpo com pedra-pomes, única forma de descolorir a pele e esbater o cheiro da uva que se havia entranhado pelos poros.

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