quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

O Telefone

O ligeiro desentendimento conjugal já durava há tanto tempo que em anos caninos já deveria ser mais idoso que o avô do Fernando Pessa, e apesar de ainda só ter motivado dois internamentos hospitalares da minha parte por ingestão abusiva de trufas, que era o som que a minha mais que tudo fazia quando encostava docilmente o seu punho naquele espaço confinado entre o lábio superior e o nariz, vulgarmente denominado por bigodame, continuava a ensombrar a vida do nosso doce lar de paredes manchadas a negro pela humidade que penetrava incessantemente pelas telhas roídas pelos elementos e pelos membros inferiores do filho da minha vizinha que insistia em se preparar para torneios de basquetebol de mesa, correndo telhado acima, telhado abaixo. Fortalecia-lhe os gémeos dizia ele, enquanto eu aguardava que uma queda lhe enfraquecesse o seu jovem filho único que vivia aconchegado dentro das cuecas ali bem perto, na Rua do Baixo Ventre.

Tudo começara com a decisão de aprisionar a minha malfadada sogra num lar, a fim de me possibilitar acordar ao por do sol em dias de trabalho, o que não era possível com ela cá em casa, pois tinha o estranho hábito de convidar ex. colegas de escola para virem todos os dias jogar partidas de sueca enquanto se alambazavam do meu stock de tortas de chocolate e ananás. Quando foi colocada a hipótese de, em troca de momentos de paz, empenharmos algumas das poupanças que a velha arrecadara ao longo de anos de trabalho árduo a contar grãos de milho para encher pacotes de pipocas antes, durante e depois de sessões de cinema para maiores de 18 anos num tabernáculo sem janelas nem balcão, onde as bebidas eram servidas em cones de páginas amarelas e as moelas tinham sempre mais de 15 dias, fui colocado entre a espada e a parede. Nas palavras daquela com quem eu partilhara juras de amor eterno, se o caquéctico ser vivo fosse deslocado para o depósito dos iguais a si, a cadela de estimação ou roedor amestrado da minha mais que tudo teria direito a pernoitar no nosso leito de amor, bem entre os dois cônjuges. Chegados a esta situação terminal, qual grilo a quem é entregue a chave do cadeado da gaiola, que não consegue utilizar por não ser provido de polegares oponíveis, optei pela decisão que proporcionaria menor dano à minha, já se si enferrujada, qualidade de vida. E a caniche de espírito felino e unhas arrebitadas passou a babar a sua viscosa saliva na minha almofada e a forrar a pêlo encaracolado, se bem que sedoso, o interior das minhas narinas.

Infelizmente foi aqui que os reais problemas começaram, quando muito simpaticamente atiramos o andarilho da mulher para a porta do lar e elevamos os decibéis da voz para a convidar, muito cordialmente, a abandonar o nosso automóvel, ao mesmo tempo que lhe entregávamos 20,00 Euros para uma injecção letal, caso ela decidisse que seria esse o seu digno final. Perante a insistência da enfermeira de serviço, mulher de modos viris, que havia fugido à vida de pobreza e fome do Dubai para se alojar neste antro de riqueza e vastidão de recursos, verdadeiro apogeu da civilização moderno-quinhentista, fomos obrigados a deixar um número de telefone para que a progenitora da minha esposa nos pudesse contactar. Imbuído de espírito familiar e desejoso de manter contacto próximo com a execrável mulher, rabisquei um número falso no primeiro cartão que encontrei e entreguei à famigerada funcionária. Mais tarde, de regresso à paz do lar fui surpreendido por um telefonema que toldou para sempre os dias do nosso, já de si tumultuoso, ninho de ácaros. Aparentemente eu havia fornecido um número falso à enfermeira num cartão-de-visita meu, onde constava o verdadeiro número. E ainda mais aparentemente, os 20,00 Euros destinados a garantir um rápido sono eterno, haviam sido esbanjados em gomas por aquela que um dia havia inspirado a produção do Pac-Man.

Desde então, muito se tem discutido neste lar à beira da via rápida plantado a fim de alterarmos o número de telefone para acabarmos com os telefonemas que já duram há 3 anos, a convidar-nos para uma sacramental visita ao seu local de repouso.

A vez que estive mais perto de convencer a minha amada a dar ouvidos aos meus argumentos foi quando consegui que a decisão ficasse dependente de um torneio de arrotos. Inicialmente vitorioso do mesmo torneio, já me encontrava a caminho de uma loja de conveniência da nossa operadora telefónica quando fui surpreendido pelo chamamento da minha cara-metade. Ela descobrira que eu havia ingerido uma lata de Coca-cola e uma botija de hélio antes da disputa, pelo que fui desclassificado por doping e tudo voltou à estaca zero.

Contudo agora os meus argumentos tomavam maior força. Ao fim de 3 anos as poupanças da idosa tinham esgotado, pois não eram tantas que pudessem suportar a mensalidade do lar e a minha muito prosélita vida boémia, de intermináveis noites regadas a meias de leite, quentinhos galões, ou, nos dias de maior fraqueza mental, saborosos sucos de goiaba dinamarquesa nas mais finas pastelarias dos arrabaldes da grande aldeia que é a minha marquise. Talvez a devesse ter colocado a trabalhar em vez de a condenar ao desterro. Há decisões que nos marcam a vida e esta, juntamente com outra anos antes em que, pensando que a rapariga estava em completo coma alcoólico, ou como dizia o barman, em falecimento alcoólico, pedira a filha da velha em casamento. Infelizmente fui alvo de uma cabala e ela estava apenas a tentar ver se tinha alguma mensagem codificada escrita no interior das suas pálpebras. Ainda hoje insiste que tem lá algo escrito, justificando que são essas mensagens que lhe permitem ter diálogos nos seus sonhos.

Uma vez que a mensalidade tardava em dar entrada na generosa conta do lar, fomos contactados a anunciar a devolução do espécimen. Pediam-nos que fossemos recolher o que nos pertencia pois já se tinham dirigido à morada que havíamos deixado aquando da descarga do entulho, mas que lá não residia nenhum familiar da supra citada individua, o que me deixou perplexo, uma vez que a morada era da Penitenciária e era mau sinal não haver nenhum familiar da mulher lá encarcerado.

Basicamente isto queria dizer que a sua filha mais nova tinha sido libertada antes do final da sua pena de 25 anos a que havia sido condenada por roubo de uma peça de um puzzle de 55.000 peças, crime esse que se abateu sobre a nossa comunidade de tal forma que num apartamento contíguo a nossa casa, uma senhora, revoltada e revelando quase total perda de juízo, desenhara um bigode na cara do Presidente da Republica, que vinha estampada numa revista cor-de-rosa. Refira-se que a pena fora agravada pela circunstância de o acto ter sido perpetrado quando restavam menos de 13 peças para completar o quebra-cabeças, que, devido à ocultação da prova, continua inerte com 54999 peças, assente numa sepultura, sob a inscrição “Aqui o meu dono jaz. Tentou fazer-me mas agora não me faz”.

Esta informação encerrava em si boas e más noticia. A boa é que ficava feliz por finalmente, ao fim de 15 anos, ter sido provada a inocência da minha cunhada. A má é que eu havia sido testemunha de acusação, vital na sua condenação e ela havia prometido vingança dolorosa, que envolveria toda uma panóplia de objectos de corte com lâminas rombas para maior dificuldade de corte bem como quantidade industriais de xarope para a tosse e bacalhau à Braz, quando era retirada do tribunal presa num colete-de-forças. Em minha defesa tenho a dizer que o fato de treino que a irmã da minha princesa usava no dia do roubo era bastante parecido com o babygrou do bebé que, tal como mais tarde se veio a confirmar, perpetrou o sanguinolento crime.

Agora colocados perante estes novos pressupostos, a questão da mudança de número de telefone tornara-se pacifica. A questão que se levantava era a de mudar de morada, a bem da nossa saúde mental e da minha saúde física. As constantes gargalhadas que saiam da boca do meu amor de cada vez que eu puxava o assunto sugeriam-me que já só a minha saúde física poderia ser salva.

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